terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Flores de martírio

Maria acabara de depilar as pernas. Agora, ia vestir as suas collants de mousse, a sua saia creme e uma blusa qualquer engraçada. Preparava-se para o namorado, que aí vinha.
O espelho reflectia a sua raiva, que descarragava em cima do mundo. Os lábios carnudos, inchados de inveja da fotografia que estava como fundo do telemóvel, sua, modificada em photoshop, sorriam para si. Os olhos castanhos, normalíssimos, tinham um brilho especial, que se modificava quando ela sorria. Os seus dentes, muito direitos, faziam as delícias de qualquer dentista. Maria era perfeita.

Tocaram à campaínha. Calçou os seus saltos altos, à pressa, e saíu do quarto. A sala, âmpla e iluminada, encheu-se de figuras femininas, sensuais, cativantes. As musas da beleza habitavam na sala de Maria. Ela tentou resistir-lhes, mas elas lutavam contra ela, lutavam, lutavam! Foram arrancados cabelos, os sofás caíram, as bandejas de prata partiram-se, os espelhos cobriram-se de sangue. As unhas de Maria lutavam para não se desmancharem. Os pêlos nas pernas acabadas de depilar começaram a crescer. As olheiras resistiram ao corrector e os olhos tornaram-se covas. O cabelo estava desgrenhado, as unhas, sujas, os pés, calejados.

Continuavam a bater à porta.
Maria não estava apresentável. As figuras femininas tinham desparecido, só restava uma. Maria deixou-se ficar no chão, caída, rota, descalça, enquanto ela avançava. A porta abriu-se, ela saíu, e fechou-se.
E Maria percebeu que nunca se tinha lembrado de depilar os pêlos da sua alma.

1 maneiras de ver a coisa:

Anónimo disse...

Flores de martirio, é um texto que dá muito que pensar...