sábado, 3 de janeiro de 2009

Ensaio sobre a tua morte

Tenho medo que sejas a última vez que nos vemos. Tu morres e eu mantenho-me cá, porque quero viver, porque tenho força de viver, porque te quero e me quero. Quero continuar a abraçar-te para sempre, quero que sejas parte de mim.


Quero chorar. Só quero chorar, hoje.


E eu tenho a certeza que foi a última vez. A última vez que nos tocámos, a última vez que a amizade brilhou entre nós, o último suspiro de um sentimento sombrio anda mal descoberto pelos nossos adolescentes corações.

Sabes, às vezes lembro-me das nossas conversas pelo telefone. Daquelas em que tu dizias que te ias matar e eu chorava. E tu arrependias-te logo de mo teres dito. Mas eu chorava e os meus olhos ardiam. No entanto, não acreditava bem no que dizias que ias fazer. Outras vezes, até ficava acordada até bem tarde, a pensar como seria a minha vida sem ti. Se me ia realmente lembrar passados uns anos. Se o tempo acabaria por te apagar de mim. Mas na altura, era-me impossível pensar nisso. Não tinha noção da morte. Não tinha noção de quem éramos, de quem eras. E sabia que, no dia seguinte, tu estarias lá para me abraçar e para rires para mim.

Houve outra noite em que tu me disseste que te ias matar, mais uma vez. E eu, mais uma vez, não acreditei, mas chorei na mesma. Chorei porque sabia que eras capaz, que não estavas a gostar da maneira como vivias. Chorei porque não te davas valor, chorei porque eras importante para mim. E porque não sabia como reagir.
Foi o dia em que falámos mais tempo ao telefone. Falámos durante 7 horas. Falámos a noite toda. E tu estávas mal, e eu passei a noite toda a chorar, até que as lágrimas secaram. Mas tu estavas decidida, tu ias morrer, independentemente de eu subir o nível das águas do mar com o meu choro. Não interessava quem ias magoar, tu estavas demasiado frágil para me ouvires, para ouvires quem quer que fosse. Tu já não existias, a tua mente estava obcecada pelo pensamento da morte. Ao fim ao cabo, já tinhas morrido há muito tempo, e ninguém se tinha apercebido.

Quem me dera ter-te posto numa caixinha.

No dia seguinte, chegámos à escola com olheiras. Faltámos às aulas, justificámos com doença. E era. Doença de ti, doença de personalidade, doença de amizade. Mas ninguém queria saber. Queríamos resolver burocracias para não nos chatearem. Então limitámo-nos, mesmo, à doença.
Visitei a tua casa pela primeira vez. Vi o teu quarto, a tua cama. Era tudo tão frágil. Escondi a cara, escondi as lágrimas para não me veres chorar mais uma vez. Entretanto, tu foste à casa de banho. Liguei rapidamente à Carolina, que mal conhecia, e pedi-lhe, no meio de muitos soluços, para vir imediatamente ter connosco. Ela disse que ia aparecer, assim que conseguisse. E eu disse-lhe para ela deixar tudo, que eu precisava dela, que tu precisavas dela.

Quando regressaste da casa de banho, estavas toda molhada. Lembrei-me daquela vez em que me molhaste no centro comercial e que eu prometi que te ia bater. E, naquele momento, apeteceu-me bater-te. Mas controlei-me.
Tu perguntaste-me o que é que eu queria, porque é que eu tinha faltado às aulas, porque é que eu gostava de ti, perguntaste-me tudo e mais alguma coisa. Mas tornou-se tudo banal. Eu não respondi. Abanei a cabeça e tentei ignorar-te. Mas já era tarde. Não aguentei a pressão. Não sei o que me deu, agora vejo que foi disparate.
Saí porta fora, e só parei quando já estava em casa. A Carolina ligou-me, a dizer que tu não abrias a porta.

Liguei-te logo. O telemóvel estava desligado. Eu sabia o que queria dizer, mas recusava-me a acreditar. Olhei para as mensagens. Tinha uma mensagem tua. Não sou capaz de a reescrever. Dizias que eu era importante para ti. Revoltei-me tanto!! Tu estavas morta, eu tentei ajudar-te, eu juro que tentei! Eu percorri montes e vales para te ajudar, eu só te queria ver feliz. Eras das coisas mais importantes para mim.

Depois, veio o teu funeral. Conheci a tua mãe. Ela estava de rastos. (E tu que pensavas que ela não gostava muito de ti...) Não fui capaz de chorar. Não consegui. Estava apática. Tinha-me prometido uma série de coisas que se tinham desvanecido na tua morte. E tu já não existias. Vi a Carolina atirar-se para dentro da cova. Os teus pais foram lá buscá-la. Ela desesperou. Ela, que não era muito de mostrar o que sentia, mudou completamente. Quis que uma prenda que tu lhe deste fosse enterrada juntamente contigo.

E aquilo passou.

Ela foi sozinha para Barcelona, mas desencorajada. Eu acabei por tirar o meu curso no Porto. Começámos a falar-nos e agora somos boas amigas. No entanto, nada comparado à amizade que eu tinha contigo.
Agora, já com mais de sessenta anos, lamento-me por ter falhado a missão a que me tinha prometido. Lamento.
Nunca fui capaz de ser professora. Fui durante um mês, mas tinha muitos alunos com problemas parecidos aos teus. E eu não queria ser negligente mais uma vez. Abandonei a minha profissão, para a qual eu tinha uma vocação impressionante, diziam. Fui, durante toda a minha vida, cônsul em África. Mas limitava-me a lidar com papéis.

Pensava muito em ti, comecei a escrever um livro, que nunca acabei. Não era sobre ti. Era sobre uma pulseira que afogou um diamante. Era um conto infantil.

Entretanto, neste momento, vou escrevendo umas coisas. A guerra rebentou mais uma vez, tenho andado fugida. Vou contra o sistema, tenho uma revolta imensa dentro de mim.
Mas tu sempre foste "a" amiga. Aquela pessoa especial, com a qual eu contava. E morreste há uma série de anos. Já não posso fazer nada agora, não é?
Já não consigo aguentar esta pressão. Nunca chegaste a desaparecer de dentro de mim.

Bateram à porta. Deve ser a Carolina, que me veio visitar de Espanha.

Adeus, querida.
Prometo que não choro mais. Prometo.

[e toda a minha vida mudava se tu desaparecesses]

6 maneiras de ver a coisa:

Joaquim Salgueiro disse...

Cada vez mais tenho a opiniao formada da tua escrita... e cada vez mais acho que escreves melhor (:

Anónimo disse...

Sabes,... há situações que são irreversíveis.

Coisas sobre as quais não nos debruçamos a tempo
e que só depois de elas acontecerem é que percebemos a sua real dimensão.

É quase sempre assim, com a morte dos outros em nós.

(chamo-lhes apenas, casos de aprendizagem tardia.
Uma pena...)

Fernando d'Almeida disse...

É, é verdade.
Há situações irreversíveis sobre as quais não nos podemos debruçar, a não ser quando elas já passaram por nós.

É pena que toda a nossa vida seja feita de desilusões e corações destroçados. É pena que ambas as partes tenham culpas. E é pena que as culpas não sejam consideradas quando outros sentimentos se sobrepõem, tal como a ira.

Por isso, a minha escrita falará sobre o futuro. Um futuro hipoteticamente real.

Anónimo disse...

Por mais que doa, uma pessoa tem sempre de ir em frente. Deve ser horrível perder alguém querido dessa maneira... mas temos de compreender o seu lado. Quando o cérebro está cheio de toxinas provenientes dos desmazelos da vida, quando estamos mortos psicologicamente, estamos já mortos na realidade. O corpo é um resto de tudo o que existiu e já não vai existir mais.
Adorei o teu texto (como sempre)! Quase chorei com a emoção forte que transmites nele!

Anónimo disse...

Tenho um desafio para ti no meu blog. Vai lá e confere!

Sara S. disse...

Dizem que o tempo cura a dor, e talvez seja verdade, mas não apaga as saudades.
É uma história que nos toca na alma. bjs