sábado, 7 de fevereiro de 2009

A origem das espécies

"Já não te percebo. Não percebo se, quando choras, as tuas lágrimas são verdadeiras. Não percebo se me persegues com a tua amizade falsa e depois, se me tentas prender, chorando."
Ela pensava assim. E não era feliz. Elas eram, como que, namoradas. Amava-se uma à outra. Era uma amizade tão profunda, que se tinha transformado em amor. Um amor verdadeiro, sem barreiras. Um amor pesado, um amor incrivelmente pesado.
Os cabelos de uma eram cortados enquanto os cabelos da outra cresciam. Os olhos de uma embaciavam-se de emoção, enquanto os da outra ficavam vidrados num coração desfeito. Uma era o 6, a outra era o 9. Elas eram-se, uma à outra.

Uma vez, decidiram matar-se, em conjunto. Uma arranjou uma série de comprimidos e a outra preparou o local. Estava preparado. Era a primeira vez que tinham uma opinião comum sobre um assunto. Não queriam viver mais, a sua vida tinha-se voltado contra elas e já não suportavam todo aquele amor intemporal. O mundo era delas e elas habitavam-no, com indiferença.

Era a última vez que se viam. Conversaram sobre o assunto. Comçavam a sufocar-se. Era um sufoco de vida. Uma vida vívida, já vivida. Queriam-se tanto uma à outra, que o amor deixou de ser racional.

Engoliram os comprimidos. E esperaram abraçadas, pelos suores, pelos desmaios. Esperaram pela morte. E a morte veio. Com um lindo vestido cor-de-rosa, sedoso. Com uma pele branca e macia, pronta para levá-las. Mas só uma estava pronta. Só uma foi pela mão da morte. Subiram as escadas e desapareceram. A morte não quis levar a outra.
As duas amigas separaram-se. Para sempre.
A que viveu, não conseguiu viver mais. A que não viveu, viveu uma vida de mordomias que acalentavam o corpo.

A que viveu, vomitou lágrimas de desespero. Chorou tanto, que encheu o mar. A outra, que não aguentava vê-la assim, utilizou as mordomias que acalentavam o seu corpo, e transformou-se no Sol. Sempre que a Mar chorava, a Sol estava sempre lá para aquecê-la. Por isso, é que, em Inglês, Mar e Sol não têm sexo. (the sea, the sun). Em Português, os GRANDES HOMENS CONHECEDORES DA CIÊNCIA decidiram que o mar e o sol são masculinos, e não se fala mais no assunto.
OS grandes conhecedores da ciência são, efectivamente, Portugueses. Mas, nas cabeças deles, não navega nenhum tipo de mar nem de sol.
Porque a amizade é uma coisa incrivelmente simples e complexa.

3 maneiras de ver a coisa:

Sara S. disse...

Um texto macabro, mas interessante. As histórias da criação da terra ou de outros elementos têm sempre uma misticidade adjacente e como são escritas em volta de um mistério, fornecem ao leitor uma possivel resposta que levará a que este se interesse. Está bastante original, sem dúvida. Beijinhos

Anónimo disse...

Adoro os teus textos! Tão diferentes e tão originais, tão maduros!
Realmente a amizade não tem sexo e não gosto que masculinizem tudo.
Gostei muito: uma lenda da formação do mar e do sol dos tempos modernos.

Joaquim Salgueiro disse...

Uma coisa, ninguém, ainda mais com a tua criatividade iria escrever 2 textos com esta diferença de tempo envolvendo o suicidio. Vejo algumas opções possiveis e nenhuma delas me agrada. Ou entao, talvez gostes demais de escrever sobre o assunto. espero qe seja apenas isso... de resto, a escrita está ao nivel que me habituaste a ver aqui (: